“Mulheres negras têm colo para todo mundo, mas fica a pergunta: quem tem colo para elas?”

Esta questão, levantada em um vídeo que circula em nossas redes, não é retórica. É um diagnóstico preciso de uma crise silenciosa e secular. Historicamente, a mulher negra no Brasil foi colocada no papel de cuidadora universal: a base da família, o esteio da comunidade, a força motriz que sustenta gerações inteiras, muitas vezes sozinha. Enquanto oferecem seu colo, força e sacrifício, seus próprios corpos e mentes adoecem pela negligência de uma sociedade que se acostumou a ser servida por elas, mas que raramente serve a elas.

Cuidar de nossas mães, irmãs, parceiras e amigas não é um favor. “Não é mimo, é reparação. É compromisso com a vida”.

O Retrato da Exaustão: Dados e Vidas

 

A realidade é traduzida em dados cruéis. Mulheres negras:

  • Vivem menos que mulheres brancas.
  • São a maioria das mães solo, segurando boa parte das famílias brasileiras.
  • São as mais ignoradas nos hospitais, sofrendo com o dobro de mortes maternas.
  • São alvo de 2 em cada 3 casos de violência obstétrica, e suas queixas de dor quase nunca são ouvidas.

Essa estatística fria tem um rosto. É o rosto da mãe no clipe da música “Se Essa Rua Fosse Minha”, da jovem e talentosa MC Victória. Uma mãe que, em meio à precariedade de uma favela, pratica o “jejum forçado”, dividindo o pão entre os filhos e dizendo que está “sem fome”. Ela é a materialização da mulher que cuida de todos, mas negligencia a si mesma, que diz sempre que “tava tudo bem”, quando, na verdade, não estava.

Essa cultura de glorificar a “mulher-guerreira” é uma armadilha. Ela nos ensina a romantizar o sofrimento e a ver o pedido de ajuda como um sinal de fraqueza. Mas, como nos lembra o vídeo, “se calar… também adoece”.

 

A Reparação Começa no Afeto: O Papel da Coletividade

 

A mudança deste quadro exige uma revolução no cuidado, que começa dentro de nossas próprias casas e comunidades.

  • O Papel dos Homens (Filhos, Parceiros, Irmãos, Amigos): O primeiro passo é a escuta ativa. É entender que o “não é nada” de uma mulher negra quase sempre é tudo. O papel masculino é o de desconstruir o privilégio de ser cuidado e se tornar um agente ativo do cuidado. Isso significa dividir radicalmente as tarefas domésticas e parentais, incentivar e acompanhar idas ao médico, perguntar sobre a saúde mental e, principalmente, ouvir sem esperar que ela precise gritar para ser ouvida.
  • O Papel da Família e da Comunidade: Precisamos resgatar a sabedoria ancestral do aquilombamento. A sobrecarga da mulher negra só existe porque a responsabilidade que deveria ser coletiva é individualizada. A comunidade deve criar redes de apoio: cozinhas comunitárias, creches e espaços de cuidado infantil geridos coletivamente, rodas de escuta e partilha. Cuidar das nossas crianças e dos nossos idosos não pode ser uma tarefa exclusiva das mulheres.

 

Cuidar da Mente: Saúde Mental como Direito e Necessidade

 

A exaustão física e emocional, somada ao racismo cotidiano, tem um impacto devastador na saúde mental. A dor que elas silenciam para não preocupar os outros vira ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas.

Nesse âmbito, a terapia e o cuidado psicológico não são luxo, são uma necessidade urgente. É preciso lutar por um aquilombamento terapêutico: a ampliação de psicólogos e psiquiatras negros no SUS e a criação de espaços de terapia, individuais ou em grupo, que compreendam as especificidades do trauma racial e da sobrecarga da mulher negra. Cuidar da mente é tão vital quanto cuidar do corpo.

 

Ações para Reverter o Quadro: Um Chamado à Prática

 

A mudança exige ações concretas em todas as frentes:

  1. No Nível Individual e Familiar: Crie uma rotina de divisão de tarefas. Pergunte ativamente como pode ajudar. Incentive o descanso e o lazer. Valide os sentimentos e as dores expressas. Lembre-se: um simples gesto já muda tudo.
  2. No Nível Comunitário: Organize redes de apoio no seu bairro ou comunidade. Crie grupos de mães para dividir o cuidado com os filhos. Promova rodas de conversa sobre saúde física e mental, convidando profissionais negros da área.
  3. No Nível Político e Estrutural: Pressione o poder público pela ampliação de creches em tempo integral. Lute por políticas de renda básica para mães solo. Exija a coleta de dados de saúde com recorte racial e a criação de protocolos específicos para o atendimento de mulheres negras no SUS, combatendo a violência obstétrica e a negligência médica.

Cuidar de uma mulher negra é um ato de reparação histórica e um compromisso com o futuro. Elas sustentam casas, sustentam gerações e merecem viver com saúde, com amor e com escuta. Proteger o futuro delas é proteger o futuro de todos nós.


 

Referências para Aprofundamento

 

Bibliografia:

  1. Carneiro, Sueli. Escritos de uma vida. Editora Jandaíra, 2018. (Coletânea de artigos que aborda, entre outros temas, o conceito de “epistemicídio” e a centralidade da mulher negra na luta antirracista).
  2. Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Zahar, 2020. (Obra fundamental que discute a interseccionalidade de raça, gênero e classe na experiência das mulheres negras).
  3. Kilomba, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2019. (Analisa as feridas psicológicas do racismo e a importância da fala e da escuta no processo de cura).

Audiovisual:

  1. Música “Se Essa Rua Fosse Minha”, de MC Victória. (Disponível em plataformas de streaming, a canção e o clipe são um retrato sensível da realidade discutida).
  2. Documentário “O Silêncio dos Homens” (2019). (Disponível no YouTube, o filme, embora não focado na questão racial, abre um importante debate sobre os papéis de gênero e a dificuldade masculina em participar do cuidado emocional).
  3. Palestra “Acolher a mulher negra e suas subjetividades”, com a psicóloga Cida Bento. (Disponível no YouTube, aborda a necessidade de um cuidado específico em saúde mental para a população negra).