Mais que Papel, um Povo em Chamas: O Crime de Ruy Barbosa, o Apagamento e a Luta por Reparação
Mais que Papel, um Povo em Chamas: A Fogueira de Ruy Barbosa, as Histórias que Sobreviveram e a Luta por Reparação
Você já se perguntou por que é tão difícil para uma pessoa negra no Brasil traçar sua árvore genealógica? Por que os nomes de nossos heróis soam como lendas distantes e nossas conquistas parecem notas de rodapé na história do país? Esse vazio não é um acidente. Ele é um projeto. E um dos atos fundadores desse projeto tem nome, data e um responsável: a queima dos arquivos da escravidão, ordenada em 14 de dezembro de 1890 pelo então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa.
Muitos aprenderam a celebrar Ruy Barbosa como o "Águia de Haia", mas o que a história oficial raramente conta é que ele foi o arquiteto de um dos maiores crimes contra a memória do povo negro. Em despacho oficial, Ruy Barbosa justificou a ordem de destruir os documentos afirmando que a República era “obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria”. Contudo, essa tentativa de "apagar a mancha" da escravidão não passou sem críticas na época. O deputado Francisco Coelho Duarte Badaró protestou no Congresso, afirmando: “não devemos fazer o papel de iconoclastas, devemos ter um arquivo. (...) Pelo fato de mandar queimar grande número de documentos para a história do Brasil, a vergonha nunca desaparecerá”. A imprensa também reagiu. O jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de dezembro de 1890, questionou: “Eu não chego mesmo a comprehender o direito que tenha um ministro de destruir documentos que, mais do que aos archivos das repartições, pertendem à história.”
O alvo da fogueira, como demonstra a HQ “Ruy Barbosa e a queima dos arquivos da escravidão” (publicada pelo The Intercept Brasil), não era a vergonha do país, mas a memória do nosso povo.
Anatomia de um Crime Contra a Memória e a Identidade
A queima dos arquivos foi um crime com múltiplas e devastadoras consequências:
- Epistemicídio e Roubo da Identidade: Ao ordenar a destruição dos registros, Ruy Barbosa cometeu o assassinato deliberado do conhecimento, o epistemicídio. Ele destruiu a prova material que poderia ajudar milhões a traçar suas origens e compreender a trajetória de suas famílias.
- Obstáculo à Reparação: A consequência mais grave foi inviabilizar o direito à reparação para as vítimas. Sem os registros, tornou-se exponencialmente mais difícil para os ex-escravizados e seus descendentes provarem o tempo de trabalho forçado.
- Crime de Lesa-Humanidade (em seus efeitos): A escravidão é um crime contra a humanidade. O ato de destruir deliberadamente as provas de um crime desta magnitude é uma continuação do próprio crime, garantindo a impunidade dos perpetradores e perpetuando o dano sobre as vítimas.
As Histórias que Ruy Barbosa Não Conseguiu Queimar
Felizmente, a tentativa de apagar nossa história não foi totalmente bem-sucedida. Uma pesquisa da Unesp em Araraquara (SP) revelou uma vasta coleção de escrituras de compra e venda de escravizados do século XIX, resultando no livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”. A obra demonstra que, apesar da ordem de Ruy Barbosa, documentos cruciais sobreviveram. O antropólogo Dagoberto Fonseca, professor da Unesp, destaca a importância do achado, considerado o maior acervo do gênero na América Latina: “É de suma importância tornar pública essa documentação. (...) só a partir daí buscar reescrever a história do Brasil”.
Onde Encontrar Nossa História: Um Guia para o Resgate da Memória
A busca por nossa história é uma jornada possível e necessária. Existem diversos espaços e ferramentas dedicados a preservar e difundir a memória afro-brasileira:
- Museus e Exposições:
- Museu Afro Brasil Emanoel Araujo (São Paulo, SP): Localizado no Parque Ibirapuera, é um espaço fundamental que abriga um acervo com mais de 8 mil obras, entre pinturas, esculturas, fotografias e documentos que celebram a arte e a história africana e afro-brasileira.
- Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira - MUHCAB (Rio de Janeiro, RJ): Situado na Pequena África, celebra a herança africana e promove exposições, debates e atividades educativas.
- Museu do Homem do Nordeste (Recife, PE): Possui importantes acervos sobre os ciclos econômicos do açúcar e a presença africana na formação da região.
- Locais de Memória:
- Cais do Valongo (Rio de Janeiro, RJ): Sítio arqueológico e Patrimônio Mundial da UNESCO, foi o principal porto de entrada de africanos escravizados nas Américas. Visitar o local é uma experiência profunda de conexão com a história da diáspora.
- Pelourinho (Salvador, BA): O centro histórico de Salvador é um museu a céu aberto, onde cada rua conta uma parte da história da resistência e da cultura negra no Brasil.
- Referências Bibliográficas e Audiovisuais:
- Livros: "Um Defeito de Cor" (Ana Maria Gonçalves); "Torto Arado" (Itamar Vieira Junior); "Pequeno Manual Antirracista" (Djamila Ribeiro).
- Filmes e Documentários: "Doutor Gama" (2021); "Medida Provisória" (2022); "Guerras do Brasil.doc - Ep. Escravidão e Racismo" (Disponível em streaming).
- Podcasts: "História Preta", "Projeto Querino".
O Arcabouço Legal e a Luta Contínua
A luta do movimento negro construiu um arcabouço legal que serve como escudo e como base para a reparação, incluindo a Constituição de 1988, a Lei 10.639/03, o Estatuto da Igualdade Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo e a jurisprudência do STF (como na ADPF 186). A vitória mais recente, o acordo histórico da Educafro com a AGU (2024), que resultou no primeiro pedido formal de desculpas do Estado brasileiro pela escravidão, é um marco que abre caminho para novas conquistas.
O Movimento como Força de Restauração: Como Fazer Parte
Se o apagamento foi um projeto de Estado, a restauração é uma tarefa de nossos movimentos. A Educafro, ao criar "Quilombos de Memória" e lutar por reconhecimento legal, pavimenta o caminho. Você pode fazer parte:
- Apoie a pesquisa histórica: Divulgue iniciativas como a da Unesp.
- Seja o historiador da sua família: Converse com os mais velhos, explore arquivos e utilize a tecnologia para buscar suas raízes.
- Posicione-se politicamente: Cobre políticas de reparação e apoie organizações como a Educafro.
A fogueira de 1890 foi alta, mas não consumiu todas as evidências da nossa história. A luta pela memória e pela reparação continua, fortalecida por cada novo documento encontrado e por cada voz que se levanta para exigir justiça.
Este artigo foi produzido a partir da unificação e reprodução parcial de informações contidas nos textos: "A destruição dos documentos sobre a escravidão", publicado em O Estado de S. Paulo - Acervo; e "As histórias que Ruy Barbosa não conseguiu queimar", publicado no Jornal da Unesp.
Redação - Este artigo não representa posições da instituição Educafro Brasil diretamente, os artigos se referem a reprodução parcial de artigos e repercussões públicas.
A Fênix Negra e a Liberdade Frágil - Rememorando O Abolicionista Luiz Gama
Agosto é o mês em que celebramos a memória do nosso patrono, Luiz Gama, um farol de estratégia e coragem. Para honrar seu legado, iniciamos hoje uma série de artigos que, nesta edição, caminhará lado a lado com uma das mais importantes produções sobre sua vida: a temporada "O Plano", do podcast História Preta.
Imagem gerada por IA simbolizando a chegada de Luiz Gama aos 17 anos no Cais do Valongo
Para entender o gigante, é preciso conhecer o menino. A história de Gama começa nas ruas vibrantes e complexas de Salvador. Ele nasceu em 21 de junho de 1830 na Rua do Bângala, no coração da cidade, uma região de intensa atividade da população negra livre e escravizada. Como ele mesmo descreveria anos mais tarde em sua célebre carta autobiográfica a Lúcio de Mendonça, ele era filho de Luiza Mahin, “negra, africana livre, da Costa da Mina (...) pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”.
Sua história, como o podcast História Preta brilhantemente narra em seu primeiro episódio, é a de uma "Liberdade Frágil". Nascido livre, Luiz Gama não deveria conhecer o cativeiro. No entanto, a traição de seu próprio pai, um fidalgo português que o vendeu como escravo aos 10 anos para pagar uma dívida, revelou uma verdade brutal: no Brasil escravocrata, a liberdade para o nosso povo era um estado precário, constantemente sob ameaça.