No dia 15 de dezembro, o Brasil celebra o Dia da Mulher Advogada Negra. Esta data não é apenas um marco no calendário; é o reconhecimento de uma luta secular pelo direito de defesa, de voz e de existência. A data homenageia Esperança Garcia, uma mulher que, muito antes de existirem faculdades de Direito no Brasil, utilizou a escrita como ferramenta jurídica para desafiar o sistema escravocrata.

Neste artigo, a Educafro Brasil resgata a memória dessa precursora e celebra as juristas negras que, hoje, ocupam tribunais, academias e defensorias, transformando o sistema de justiça brasileiro.


Quem foi Esperança Garcia?

Em 6 de setembro de 1770, no Piauí, uma mulher negra escravizada chamada Esperança Garcia escreveu uma carta ao Governador da província. O documento não era apenas um pedido de socorro; era uma petição jurídica.

Esperança denunciava os maus-tratos físicos sofridos por ela e suas companheiras, a proibição de batizar seus filhos e a separação forçada de seu marido. Com uma caligrafia firme e argumentos baseados no Direito Canônico e no Direito Natural vigente à época, ela exigiu justiça.

Em 2017, a OAB do Piauí e, posteriormente, o Conselho Federal da OAB, reconheceram Esperança Garcia como a Primeira Advogada do Brasil. Seu ato provou que o conhecimento jurídico e a sede de justiça são inerentes à nossa ancestralidade, mesmo quando o sistema tenta nos silenciar.

A Importância da Mulher Negra no Direito

A presença de mulheres negras no Direito rompe com a lógica colonial. Historicamente, o corpo negro frequentava os tribunais apenas no banco dos réus. Quando uma mulher negra veste a toga, ocupa a tribuna ou assina uma petição, ela subverte essa lógica e traz para o judiciário uma perspectiva única de quem sente na pele as falhas do Estado.

Elas são essenciais para:

  1. Humanizar a Justiça: Trazendo o recorte de gênero e raça para a aplicação das leis.

  2. Combater o Racismo Institucional: Questionando doutrinas jurídicas que perpetuam desigualdades.

  3. Inspirar Novas Gerações: Mostrando às meninas negras que o lugar delas é onde elas quiserem, inclusive no STF.


Expoentes Contemporâneas: Elas Fazem História Hoje

Se Esperança Garcia plantou a semente, hoje colhemos frutos poderosos. O cenário jurídico brasileiro conta com gigantes que são referências obrigatórias:

  • Dra. Silvia Souza: Advogada e ativista, fez história ao realizar uma sustentação oral no STF usando o cabelo Black Power e citando um rap dos Racionais MC’s. Foi peça-chave na articulação da ADPF das Favelas.

Dra. Silvia Souza: Advogada e ativista
Dra. Silvia Souza: Advogada e ativista
  • Dra. Lívia Sant’Anna Vaz: Promotora de Justiça na Bahia, reconhecida internacionalmente (uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo), autora de obras fundamentais sobre a Justiça e o sistema racial.

    Dra. Lívia Sant’Anna Vaz: Promotora de Justiça na Bahia
    Dra. Lívia Sant’Anna Vaz: Promotora de Justiça na Bahia
  • Dra. Thula Pires: Professora da PUC-Rio, uma das maiores constitucionalistas do país, que repensa o Direito Constitucional a partir da perspectiva do quilombo e da mulher negra.

Dra. Thula Pires: Professora da PUC-Rio
Dra. Thula Pires: Professora da PUC-Rio
  • Ministra Vera Lúcia Santana Araújo: Em 2023, tornou-se a segunda mulher negra na história a ocupar uma cadeira de ministra substituta no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), rompendo um hiato histórico.
Ministra Vera Lúcia Santana Araújo
Ministra Vera Lúcia Santana Araújo

 

  • Dra. Eunice Prudente: Pioneira, foi a primeira professora negra da Faculdade de Direito da USP e secretária de Justiça de SP, abrindo caminhos na academia quando tudo era ainda mais difícil.

Dra. Eunice Prudente
Dra. Eunice Prudente
  • Dra. Juliana Souza: Advogada que entrou para a história do Direito brasileiro ao obter a maior condenação penal por racismo já vista no país. Sua atuação técnica e combativa no caso que condenou uma influenciadora a quase 9 anos de prisão em regime fechado provou que a internet não é terra sem lei e que o racismo deve ser punido com o rigor da cadeia, não apenas com multas.
Dra. Juliana Souza: Advogada
Dra. Juliana Souza: Advogada
  • Dra. Soraia Mendes: Jurista, advogada e pós-doutora. É uma das intelectuais mais importantes do país na construção de um Direito Penal feminista e antirracista. Sua obra é fundamental para entender como o sistema criminal pune seletivamente corpos negros e mulheres. Foi, inclusive, um dos nomes indicados pelo movimento negro para a vaga no STF, dada sua excelência técnica e compromisso social.
Dra. Soraia Mendes: Jurista, advogada e pós-doutora
Dra. Soraia Mendes: Jurista, advogada e pós-doutora
  • Dra. Adriana Cruz: Juíza Federal no Rio de Janeiro e professora da PUC-Rio. É uma das poucas magistradas negras na Justiça Federal e uma voz dissonante e necessária dentro do Poder Judiciário. Atua fortemente no debate sobre encarceramento, lavagem de dinheiro e segurança pública sob uma ótica que não criminaliza a pobreza.
Dra. Adriana Cruz: Juíza Federal no Rio de Janeiro e professora da PUC-Rio
Dra. Adriana Cruz: Juíza Federal no Rio de Janeiro e professora da PUC-Rio

 

Dra. Chiara Ramos: Procuradora Federal e cofundadora do coletivo Abayomi Juristas Negras
Dra. Chiara Ramos: Procuradora Federal e cofundadora do coletivo Abayomi Juristas Negras
  • Keit Lima: Vereadora e ativista histórica. Representa a ocupação da política institucional por mulheres negras. Keit atua na gênese do direito, legislando e fiscalizando para que as leis municipais sirvam, de fato, à população negra e pobre, vitoriosa no projeto “FAVELA NO ORÇAMENTO” e levando a pauta da Educafro para dentro da tribuna.
Keit Lima: Vereadora e ativista histórica
Keit Lima: Vereadora e ativista histórica

Leituras Obrigatórias: Descolonizando o Pensamento Jurídico

Para as estudantes e advogadas que desejam se aprofundar, a Educafro indica obras escritas por mulheres negras que são verdadeiros manuais de sobrevivência e estratégia jurídica:

  1. “A Justiça é uma mulher negra”Lívia Sant’Anna Vaz e Chiara Ramos. Uma análise sobre como o sistema de justiça opera e como ele pode ser transformado.

  2. “Constitucionalismo Quilombola”Thula Pires. Fundamental para entender o direito à terra e a cidadania sob a ótica racial.

  3. “Interseccionalidade”Carla Akotirene. Essencial para aplicar o direito compreendendo as múltiplas opressões (raça, classe, gênero).

  4. “Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil”Sueli Carneiro. Embora filósofa, Sueli fundamenta a base teórica usada por todo o ativismo jurídico negro atual.


Fontes de Inspiração e Redes de Apoio

Ninguém caminha só. Para as jovens negras que sonham com a advocacia ou para as profissionais que buscam seus pares, indicamos acompanhar e fortalecer as seguintes iniciativas:

  • Abayomi Juristas Negras: Rede de juristas negras que atua no fortalecimento e visibilidade das profissionais.

  • Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ): Busque as comissões de igualdade racial regionais.

  • Comissões da Mulher Advogada e de Igualdade Racial das OABs: Espaços institucionais de disputa e acolhimento.

  • Instituto da Mulher Negra (Geledés): Referência em advocacia (advocacy) e litigância estratégica em direitos humanos.

Que a coragem de Esperança Garcia guie cada petição, cada sustentação oral e cada sentença. O Direito é nosso por herança e por conquista.

Educafro Brasil Aquilombando o Direito e construindo justiça.