Muitas vezes, a história oficial tenta nos convencer de que o pensamento crítico sobre raça no Brasil é uma invenção recente. Nada poderia ser mais falso. Décadas antes de termos as palavras “branquitude” e “racismo estrutural” na ponta da língua, um homem negro, baiano de Santo Amaro da Purificação, já dissecava a alma do país com uma precisão cirúrgica. Seu nome era Alberto Guerreiro Ramos.
Resgatar a obra de Guerreiro Ramos não é apenas um exercício de memória; é uma necessidade estratégica. Como nos lembra o sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva, em análise publicada na Folha de S.Paulo, Guerreiro foi um dos sociólogos mais interessantes, esquecidos e injustiçados do século 20. Por que esquecido? Talvez porque, ao contrário de seus pares brancos, ele se recusou a tratar o negro apenas como um “tema” de estudo. Ele nos viu como gente viva.
A Inversão do Olhar: A Patologia do Branco Brasileiro
Em meados dos anos 1950, enquanto a academia brasileira ainda estava obcecada em estudar o negro como um “problema”, Guerreiro Ramos fez um movimento revolucionário: ele virou o espelho. Foi ele o pioneiro ao sugerir que o verdadeiro objeto de estudo deveria ser o branco e sua “patologia social”.
Para Guerreiro, o racismo não era um defeito do negro, mas uma doença coletiva da branquitude brasileira. Essa ideia, que hoje fundamenta os estudos críticos da branquitude, foi plantada por ele há quase 70 anos. Ele nos ensinou que não basta lutar pelos direitos dos negros; é preciso diagnosticar e tratar a neurose de quem oprime.
Negro Sou: A Vida Negra Além da Dor
A coletânea “Negro Sou”, organizada pelo cientista social Muryatan Barbosa, reúne textos fundamentais de Guerreiro Ramos entre 1949 e 1973. Neles, vemos um intelectual que se recusava a reduzir a experiência negra à escravidão ou à subalternidade.
Guerreiro via a vida negra como algo multiforme, insubmissa e vibrante. Ele transitava do Teatro Experimental do Negro, ao lado de Abdias do Nascimento, aos gabinetes de Estado e à política partidária. Ele entendia que a luta antirracista precisava acontecer em todas as frentes: na arte, na administração pública e na produção de conhecimento.
Um Convite ao Aprofundamento
Para a Educafro, a obra de Guerreiro Ramos é uma bússola. Ela nos lembra que a nossa luta não começou hoje e que temos uma linhagem intelectual poderosa que precisa ser lida, debatida e honrada.
Se você quer entender o Brasil de hoje, precisa ler quem o decifrou ontem. Guerreiro Ramos nos mostra que o tempo passou, conquistamos direitos, mas a estrutura desigual e letal ainda persiste. E, como ele bem disse, a vida negra continua múltipla, insatisfeita e insubmissa.
Que tal começar essa jornada de conhecimento?
Para Conhecer Mais e Se Aprofundar
O Livro Essencial:
-
RAMOS, Guerreiro. Negro Sou: A questão étnico-racial e o Brasil (Ensaios, artigos e outros textos, 1949-1973). Organização de Muryatan Barbosa.
-
Por que ler: É a porta de entrada para o pensamento racial de Guerreiro Ramos, reunindo textos que desafiam o status quo da sociologia brasileira e colocam o negro como sujeito da própria história.
-
Obras Complementares:
-
BARBOSA, Muryatan. A razão negra: o pensamento de Guerreiro Ramos.
-
Por que ler: Uma análise aprofundada sobre a contribuição intelectual de Guerreiro, escrita pelo organizador da coletânea “Negro Sou”.
-
-
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro. Editora Perspectiva.
-
Por que ler: Abdias foi companheiro de luta e de arte de Guerreiro no Teatro Experimental do Negro. Sua obra dialoga diretamente com a denúncia da “patologia social do branco”.
-
-
BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. Editora Companhia das Letras.
-
Por que ler: A obra contemporânea que melhor desenvolve e atualiza a intuição pioneira de Guerreiro Ramos sobre o comportamento da branquitude no Brasil.
-
Audiovisual:
-
Documentário “Branco Sai, Preto Fica” (2014), de Adirley Queirós.
-
Por que assistir: Um filme que, através da ficção científica e do documentário, expõe a “patologia social” do Estado e da polícia em relação à população negra e periférica.
-
-
Palestras de Muryatan Barbosa sobre Guerreiro Ramos (Disponíveis no YouTube).
-
Por que assistir: O professor Muryatan é a maior autoridade viva sobre a obra de Guerreiro e oferece aulas magnas sobre seu pensamento e legado.
-

