são paulo, 1 de outubro de 1992.

O ar está pesado. Mais um dia, como diz o poeta da canção que ainda não foi escrita, “sob o olhar sanguinário do vigia”. O cheiro de morte ronda os pavilhões superlotados, um pressentimento que se mistura ao odor de esgoto e desespero. Lá fora, o país se prepara para eleições municipais. Aqui dentro, a única eleição é entre a sobrevivência e a loucura. A tensão é uma navalha. Ninguém sabe, mas a história se prepara para parir um de seus monstros. Este é o diário da véspera.

 

Amanhã, 2 de outubro, o Estado brasileiro escreverá uma de suas páginas mais vergonhosas com o sangue de 111 de nós no Complexo Penitenciário do Carandiru. E anos mais tarde, os Racionais MC’s, no álbum “Sobrevivendo no Inferno”, transformariam este pressentimento em crônica, este massacre em memorial, e esta injustiça em um grito que se recusa a calar.

Hoje, mais de três décadas depois, a pergunta que a música ecoa continua sem resposta nos tribunais, mas ressoa com clareza em nossas mentes: por que a justiça ainda não foi feita?

 

A Contracrônica de um Crime de Estado: Arte e Hipocrisia

 

Para entender a profundidade da ferida, é preciso lembrar da luz que tentaram apagar. Poucos dias antes deste 1º de outubro, o presídio do Carandiru recebeu as câmeras do programa “Hora Livre”, do Serginho Groisman. O Estado permitiu que o Brasil visse a humanidade que ali pulsava: detentos participando de um festival de rap, rimando, criando, sonhando. O programa mostrou rostos, talentos e a esperança de que a arte poderia ser um caminho.

Essa imagem, de uma aparente normalidade e de um resquício de cidadania, torna o que aconteceu em seguida ainda mais hediondo. A mesma instituição que permitiu a entrada de microfones e câmeras, dias depois autorizou a entrada de centenas de policiais militares com fuzis e metralhadoras. A arte foi silenciada pelo som das balas. Essa contradição expõe a hipocrisia de um sistema que só reconhece a humanidade do preso quando lhe é conveniente, mas que não hesita em aniquilá-la quando decide pela barbárie.

 

A Anatomia Jurídica do Massacre

 

O massacre do Carandiru pode ser analisado sob diversas lentes do Direito, e em todas elas, o que se revela é um colapso do Estado de Direito.

  • A Constituição Rasgada: O artigo 5º da nossa Constituição foi aniquilado naquele dia. O direito à vida, a proibição da tortura e do tratamento desumano ou degradante, e o dever do Estado de assegurar aos presos o respeito à integridade física e moral foram todos transformados em letra morta. O Estado, que tem o dever de proteger quem está sob sua custódia, tornou-se o algoz.
  • O Labirinto da Impunidade: O desenrolar do processo judicial é, em si, um segundo massacre, como brilhantemente detalhado no podcast Rádio Novelo Apresenta, no episódio “O Massacre do Carandiru”. Após anos de investigação, dezenas de policiais militares foram levados a júri popular e condenados pelo assassinato dos 111 detentos. Contudo, em 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em uma decisão escandalosa, anulou todos os vereditos, acolhendo a tese da defesa de que não seria possível individualizar a conduta de cada policial. Desde então, o caso vive um vaivém de recursos nos tribunais superiores (STJ e STF). Até hoje, 33 anos depois, nenhum agente do Estado está preso e cumprindo pena definitiva pelo maior massacre do sistema prisional brasileiro. A mensagem que o sistema de justiça envia é clara: vidas encarceradas, especialmente se forem negras e pobres, podem ser ceifadas sem que haja responsabilização.

 

A Cor da Desumanização

 

Por que foi possível? Por que a sociedade, em grande parte, aceitou o discurso oficial de que “não morreu nenhum santo”? A resposta está na cor e na classe. O sistema prisional brasileiro é a face mais explícita do nosso racismo estrutural. A imensa maioria dos encarcerados é negra e pobre. O Carandiru era um espelho dessa realidade.

Essa sobrerrepresentação não é um acaso; é um projeto. A construção social do “bandido” no Brasil tem a nossa cara. Essa associação entre negritude e criminalidade serve a um propósito nefasto: ela desumaniza. Ela transforma cidadãos, com direitos e histórias, em “elementos” ou “ameaças” que precisam ser contidas e, no limite, eliminadas.

Quando a polícia invadiu o Pavilhão 9, ela não viu 111 cidadãos brasileiros; ela viu 111 corpos matáveis. Corpos cuja vida tem menos valor para o Estado e para uma parcela da sociedade. O massacre do Carandiru é o resultado prático da necropolítica: a gestão da morte de populações indesejadas. É a prova de que, para o Estado brasileiro, alguns de nós são considerados menos humanos e, portanto, descartáveis.

“Diário de um Detento” é o nosso “Guernica” em forma de rap. É uma obra de arte que nos obriga a olhar para o horror, para que ele nunca seja esquecido. Enquanto a justiça dos homens falha, a contundência da rima dos Racionais cumpre uma função constitucional: a de manter viva a memória e acesa a chama por uma justiça que, embora tardia, não pode falhar para sempre. A luta continua.


 

Referências para Aprofundamento

 

Bibliografia:

  1. ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Editora Jandaíra, 2019. (Essencial para compreender a base teórica de como o racismo opera nas instituições, como o sistema de justiça e o carcerário).
  2. VARGAS, João H. Costa. Apartheid Brasileiro: O Legado do Genocídio Negro e as Novas Formas de Resistência. Editora Ideias & Letras, 2021. (Analisa a violência do Estado contra a população negra como um projeto contínuo).
  3. Varella, Drauzio. Estação Carandiru. Companhia das Letras, 1999. (Relato de um médico que trabalhou no presídio, oferecendo um olhar humanizado sobre a vida antes do massacre).

Audiovisual:

  1. Álbum “Sobrevivendo no Inferno” (1997), de Racionais MC’s. (A obra completa é um documento sociológico e jurídico indispensável).
  2. Podcast “Rádio Novelo Apresenta”, episódio “O Massacre do Carandiru”. (Uma investigação jornalística profunda e detalhada sobre o evento e o vergonhoso processo judicial que se seguiu).
  3. Filme “Carandiru” (2003), de Hector Babenco. (Dramatização baseada no livro de Drauzio Varella que ajudou a fixar o evento no imaginário popular brasileiro).
  4. Programa “Hora Livre” de Serginho Groisman, gravado no Carandiru em 1992. (Trechos podem ser encontrados no YouTube e servem como um documento histórico do contraste entre a arte e a barbárie).

 

Redação: O artigo apresenta um consolidado de publicações em diversas midias que repercutiram sobre o assunto de forma construtiva e fundamentada não representando falas, posicionamentos ou práticas da entidade Educafro Brasil