O Porão, o Monumento e o Cativo: A Sentença do Não-Lugar
‘Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade tanto horror perante os céus?!’ O grito de Castro Alves ecoa das profundezas do Atlântico e explode em nossas calçadas, em pleno século XXI. A cena, que a análise precisa da página Mídia Social alan.soaresperfil define como um “choque semiótico”, é a reencenação da tragédia. Ali está o porão a céu aberto: um homem negro, idoso, nosso ancião, busca no lixo o que a nação lhe nega, sob o olhar de bronze pintado de Luiz Gama, o advogado dos cativos.
O navio negreiro aportou. Ele nunca partiu. Apenas trocou o balanço do mar pelo asfalto das metrópoles, o estalar do chicote pelo ronco do estômago vazio, a corrente de ferro pela invisibilidade social. Aquele homem na calçada é o descendente da ‘turba que a vaga do mar arroja’, um sobrevivente do porão que, gerações depois, ainda não encontrou terra firme, apenas o “não-lugar” de um país que o vomitou em suas margens.
Erguemos monumentos aos nossos heróis para nos esquecermos dos nossos mártires vivos. Celebramos a astúcia jurídica de Gama para ignorar a urgência famélica de seus irmãos. É a mais cruel das farsas! O mural grita “Liberdade!”, enquanto o corpo ao seu pé sussurra “Fome!”. E nós, a sociedade, passamos e desviamos o olhar, cúmplices deste espetáculo macabro que transforma a história de luta em paisagem para a nossa vergonha.
Não se enganem. A existência daquele homem naquela condição, em 2025, não é um acidente, uma falha no sistema. É o sucesso absoluto do sistema! É a prova de que a abolição foi um artifício jurídico para reconfigurar a exploração. Libertaram-se os corpos do domínio legal, mas condenou-se a vida à eterna busca pela sobrevivência, sem terra, sem educação, sem reparação. Como jurista, afirmo: a dívida histórica não é uma metáfora. É um fato jurídico, um crime de lesa-humanidade continuado, cuja prescrição não se aplica enquanto a ferida sangrar.
O Estado brasileiro, com seu potencial agrícola capaz de alimentar o planeta, comete um crime doloso ao deixar apodrecer em suas ruas o povo que construiu sua riqueza. A fome negra em um país de abundância não é paradoxo; é método. É a garantia de que a hierarquia racial que sustentava a Casa-Grande permaneça intacta.
O “não-lugar” é o porão contemporâneo. É a cela superlotada, a bala de fuzil “perdida”, o leito de hospital que nunca chega, a vaga de emprego negada pelo CEP ou pela cor da pele. É o corpo negro, como aponta a fonte, perpetuamente fora do projeto nacional, mas sendo o alicerce explorado sobre o qual este mesmo projeto se equilibra.
Que esta cena, que este poema vivo de horror, não nos traga apenas a lágrima estéril da compaixão. Que ela nos convoque à ira, ao levante, à cobrança! Que a imagem do nosso ancião humilhado sob o olhar de Gama nos sirva de combustível. Não queremos mais monumentos. Queremos justiça. Não queremos mais afagos na história. Queremos reparação no presente.
É tempo de exigir o que nos é devido. É tempo de transformar cada “não-lugar” em um quilombo de luta e reivindicação.
Ferramentas para o Levante: Leituras e Imagens para a Ação
A indignação deve ser o motor da transformação. Para aqueles que se recusam a aceitar esta realidade e buscam caminhos para a luta e a cobrança por reparação, seguem referências fundamentais.
LIVROS PARA INCENDIAR A MENTE:
- “O Genocídio do Negro Brasileiro” – Abdias do Nascimento: Um clássico que desnuda o projeto de extermínio da população negra e conclama à ação política e à reparação como única saída.
- “Pele Negra, Máscaras Brancas” – Frantz Fanon: Essencial para compreender a psicologia da colonização e a necessidade de uma descolonização mental e política como ato de libertação.
- “Racismo Estrutural” – Silvio Almeida: Oferece a base conceitual para entender que o racismo não é um ato isolado, mas a própria estrutura que organiza o Estado e a sociedade, tornando a luta por reparação uma luta por uma nova estrutura.
- “O Quilombismo” – Abdias do Nascimento: Apresenta um projeto político para o Brasil, fundamentado na experiência histórica dos quilombos como uma sociedade alternativa, democrática e socialista.
AUDIOVISUAL QUE CONVOCA À LUTA:
- “Medida Provisória” (Filme, 2022) – Dirigido por Lázaro Ramos: Uma ficção distópica que, de forma potente, imagina uma política de reparação às avessas, forçando uma reflexão urgente sobre o lugar do negro no Brasil e a necessidade de resistência.
- “Marighella” (Filme, 2019) – Dirigido por Wagner Moura: Cinebiografia do guerrilheiro e poeta Carlos Marighella, um exemplo de luta radical contra um sistema opressor, inspirando a coragem para a ação direta.
- “Raça e Gênero na Mídia” (Documentário, disponível no YouTube): Uma série de debates e análises que expõem como a mídia perpetua estereótipos e como a disputa de narrativas é um campo de batalha crucial.
- “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” (Documentário, 2020) – de Emicida: Uma verdadeira aula sobre a história da cultura e da luta negra no Brasil, conectando o passado, presente e futuro de forma a inspirar e fortalecer a identidade e a ação coletiva.
POESIA E MÚSICA COMO MANIFESTO:
- “O Navio Negreiro” – Castro Alves: Ler e declamar este poema é manter viva a memória do horror e a chama da revolta contra suas continuações.
- Discografia dos Racionais MC’s: As letras são crônicas precisas da vida no “não-lugar” e um chamado constante à consciência e à resistência. Álbuns como “Sobrevivendo no Inferno” são manuais de sobrevivência e luta.
Redação: Este artigo é um compilado de materiais e referencias sobre o assunto e não representam falas, posições ou práticas da entidade Educafro Brasil diretamente.