A Lei dos Homens, a Justiça dos Ancestrais e o Sangue de Nossos Líderes

 

Que as nossas palavras ressoem como o trovão da indignação e a sentença da verdade! Noticia o jornal O Globo, em 12 de setembro de 2025, a captura de um sicário, um tal “Nove de Ouro do Baralho do Crime”, um dos homens acusados de cravar 22 balas no corpo sagrado de Mãe Bernadete Pacífico. Celebra o Estado a queda de uma carta em seu baralho de horrores. E eu pergunto: que justiça é esta, que só age sobre o sangue derramado e nunca para proteger a vida que pulsa?

Que não se enganem os senhores do poder! A prisão de um executor não é senão o mais ínfimo ato de um drama cujo roteiro foi escrito pela mão do próprio Estado. Um Estado que, com a mesma displicência com que ontem acorrentava nossos corpos, hoje assiste ao avanço do crime, da grilagem e de toda sorte de bandidagem sobre nossos territórios sagrados. A execução de Mãe Bernadete, em seu solo, o Quilombo Pitanga dos Palmares, não foi um crime comum. Foi um ato de guerra contra nosso povo! Uma declaração de que, para o sistema, uma matriarca negra que defende sua terra vale menos que a ganância de facínoras que a querem para o tráfico.

Eles a mataram porque seu corpo e sua voz eram a encarnação do próprio Quilombo: um território livre, insubmisso ao poder paralelo, seja ele do crime organizado ou da negligência estatal. Como advogado, afirmo sem temor: a omissão do Estado em proteger uma defensora de direitos humanos, sabidamente ameaçada, configura, no mínimo, uma conivência culposa com sua morte. A lei que deveria ser escudo torna-se teia de aranha, forte para os pequenos e frágil para os que detêm o poder.

Viajo por este mundo e vejo a mesma farsa. Em cada continente, encontro irmãos e irmãs cujas vozes são caladas a fogo e a chumbo porque ousam defender a terra, a água, a cultura, a vida. São os novos cativos de um sistema global que não usa mais grilhões de ferro, mas as correntes invisíveis do capital extrativista e do racismo estrutural.

A juventude de nossas periferias, que faz da batida do trap e da rima do rap o seu manifesto, entende essa guerra. O jovem que cai sob o fuzil da polícia na favela e a líder quilombola executada em seu território são vítimas da mesma lógica de extermínio. Ambos são vistos como obstáculos ao “progresso” e à “ordem” de uma nação que nunca acertou as contas com seu passado escravocrata.

Portanto, a captura deste “Nove de Ouro” não nos ilude. Enquanto o “Ás de Ouros” seguir foragido e, mais importante, enquanto os verdadeiros “Reis” e “Rainhas” que financiam e se beneficiam deste sistema de morte permanecerem em seus palácios, a justiça não passará de uma miragem. Não queremos migalhas de uma justiça tardia. Exigimos a dignidade de uma proteção efetiva!

A memória de Mãe Bernadete, como a de Luiz Gama, de Marielle Franco, de Mestre Moa do Katendê, de Bruno Pereira e de Dom Phillips, não pode ser reduzida a um número de processo. Deve ser a pedra fundamental de um novo pacto civilizatório, onde a vida negra e indígena não seja negociável.

Que a lei dos homens finalmente se curve à justiça dos ancestrais!


 

Análise Jurídica e Medidas para o Fim da Impunidade

 

A reincidência de execuções de defensores de direitos humanos expõe falhas graves no ordenamento jurídico e na sua aplicação. Para que a tragédia de Mãe Bernadete não se repita, é imperativo que o debate avance sobre fatos e ações concretas:

  1. Responsabilização do Estado: A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 5º e 6º, garante o direito à vida e à segurança. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já condenou o Brasil em casos de violência contra defensores. A família de Mãe Bernadete tem o direito de acionar o Estado por sua falha no dever de proteção, criando jurisprudência que force o poder público a agir preventivamente.
  2. Federalização dos Crimes: Crimes contra defensores de direitos humanos, especialmente aqueles ligados a disputas de terra e conflitos socioambientais, devem ser federalizados com maior celeridade. Isso retira a investigação de âmbitos locais, muitas vezes suscetíveis a pressões de poderes políticos e econômicos regionais.
  3. Implementação Efetiva de Programas de Proteção: O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) precisa de orçamento robusto, equipes multidisciplinares e, crucialmente, articulação real com as forças de segurança estaduais. Medidas de proteção não podem se resumir a um número de telefone para emergências.
  4. Tipificação do Crime de “Ecocrime” ou Violência Política: É necessário avançar na legislação para criar tipos penais específicos que punam com maior rigor a violência cometida com a finalidade de silenciar ativistas sociais, ambientais e políticos, reconhecendo o atentado contra a própria democracia.
  5. Titulação e Proteção dos Territórios: A raiz do conflito é a questão territorial. A maior proteção para um povo quilombola ou indígena é a demarcação e titulação definitiva de suas terras, conforme manda a Constituição. A morosidade do INCRA e da FUNAI é cúmplice direta da violência.

 

Para Ampliar o Debate: Referências e Repertório

 

Para compreender a profundidade da luta de Mãe Bernadete e de tantos outros, é fundamental buscar conhecimento.

LIVROS:

  • “Quilombos: Resistência ao Escravismo” – Clóvis Moura: Obra clássica para entender a formação e a importância histórica dos quilombos como espaços de liberdade e resistência.
  • “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado” – Abdias do Nascimento: Analisa as estruturas de extermínio da população negra no Brasil, do pós-abolição aos dias de hoje.
  • “Ideias para adiar o fim do mundo” – Ailton Krenak: Embora de um líder indígena, sua filosofia sobre a relação com a terra e a crítica ao modelo de desenvolvimento predatório se conecta diretamente à luta quilombola.

DOCUMENTÁRIOS E FILMES:

  • “Amazônia Sociedade Anônima” (2019), de Estevão Ciavatta: Documentário que expõe as redes criminosas que atuam na Amazônia, um espelho da violência que atinge outros biomas e territórios.
  • “Marielle: O Documentário” (Globoplay, 2020): Detalha a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, outro crime político que chocou o Brasil e expôs a conexão entre crime e poder.
  • “Ser Tão Velho Cerrado” (2018), de André D’Elia: Mostra a luta de comunidades do Cerrado contra o avanço do agronegócio, refletindo a mesma disputa por terra vivida nos quilombos.

RELATÓRIOS E MATÉRIAS:

  • Relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT): Anualmente, a CPT publica um caderno detalhado sobre os conflitos no campo no Brasil, nomeando vítimas e analisando as causas da violência. É uma fonte de dados indispensável.
  • Relatórios da Global Witness e Human Rights Watch: Organizações internacionais que monitoram e denunciam assassinatos de defensores ambientais e de direitos humanos em todo o mundo, frequentemente colocando o Brasil nas primeiras posições deste ranking vergonhoso.
  • Caso Dorothy Stang: Pesquisar sobre a missionária e ativista assassinada no Pará em 2005. A história de sua luta e os desdobramentos de seu assassinato oferecem paralelos importantes sobre a impunidade e a persistência da violência.
Redação: O artigo é um compilado de materiais que repercutiram na mídia sobre o assunto, não representa assim falas, posições ou práticas adotadas pela entidade Educafro Brasil.