A Sentença da Casa-Grande: O Estado que Resgata com uma Mão e Abandona com a Outra
O caso de Sônia Maria de Jesus é uma ferida exposta na alma do Brasil. Não é apenas a história de uma mulher negra, surda e com visão monocular resgatada após 40 anos de servidão; é a materialização da falência de um projeto de nação e um divisor de águas para o futuro da luta antiescravista no país. A recente carta emitida pelo Escritório do Alto Comissariado da ONU, detalhada pelo portal NSC Total, eleva a vergonha nacional a um patamar global. A ONU pergunta o que o Brasil está fazendo. A resposta, infelizmente, está na própria trajetória de Sônia: muito pouco, e de forma terrivelmente contraditória.
O resgate, realizado em 2022, foi o Estado cumprindo seu dever. Contudo, a posterior decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou o retorno de Sônia à casa de seus algozes – um desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – é o mesmo Estado agindo como capataz. Este ato, que a deputada Carla Ayres (PT-SC) corretamente batizou de “desresgate”, não é um ponto fora da curva. É a mais cruel manifestação de um sistema judicial que, como aponta a reportagem da Agência Câmara de Notícias, ainda opera sob a lógica da casa-grande.
O argumento utilizado é o mito da serva que era “quase da família”. Como a revista CartaCapital expõe em sua devastadora matéria “A vida fora da casa-grande”, este discurso é uma herança ideológica direta do escravismo. A mesma reportagem nos lembra de um juiz que, em outro caso, negou a existência de trabalho escravo porque a vítima fora “madrinha de casamento” de um filho da família, como se um gesto de suposto afeto pudesse anular décadas de servidão.
O drama de Sônia joga luz sobre o que a pesquisadora Lívia Miraglia chama de “o principal gargalo”: a falha abissal do Estado na reinserção social das pessoas resgatadas. O trabalho do MPT, embora heroico, termina no portão. Do lado de fora, resta um deserto de políticas públicas. A média de duração do trabalho escravo doméstico é de 26,8 anos. As vítimas, majoritariamente mulheres negras, saem de um cativeiro privado para um abandono público.
Enquanto isso, em Genebra, um relatório da ONU, noticiado pela ONU News, afirma que a “justiça reparatória é indispensável”. O Brasil é citado por um pedido formal de desculpas pela escravidão em 2024. Que ironia trágica! O Estado pede perdão simbólico pela história, enquanto sua estrutura judicial devolve Sônia ao cativeiro e seu aparato de assistência social falha em amparar as vítimas que conseguem escapar.
O Nó da Justiça: Desfechos e Prevenção
Acompanhar o caso Sônia Maria de Jesus é crucial porque seu desfecho no STF criará um precedente histórico. As possibilidades são claras:
- O Desfecho da Vergonha: A manutenção da decisão do STJ, chancelando o “desresgate”. Seria uma vitória da tese do “laço afetivo” sobre os direitos humanos, legalizando uma forma de cativeiro e desmoralizando o trabalho de auditores e procuradores.
- O Desfecho da Dignidade: A reversão completa da decisão, garantindo a liberdade de Sônia, seu direito de escolha sobre com quem viver (sua família biológica, que a busca) e determinando ao Estado a obrigação de prover todo o suporte necessário para sua reintegração, incluindo saúde, educação em Libras e amparo psicossocial.
- O Desfecho Incompleto: Uma decisão que a liberta, mas sem garantir os mecanismos de suporte ou a devida punição aos responsáveis, perpetuando o ciclo de abandono pós-resgate.
Evitar que novos casos como este ocorram exige mais do que indignação. Exige ação política e jurídica concreta:
- Legislação Específica: Criação de uma lei que proíba expressamente o “desresgate”, tratando o retorno da vítima ao local da exploração como uma revitimização e um crime.
- Capacitação do Judiciário: Implementação de programas de formação obrigatória para magistrados sobre as dinâmicas da escravidão contemporânea, com foco nas interseccionalidades de raça, gênero e deficiência, para desmistificar o argumento falacioso da “relação familiar”.
- Política Nacional de Acolhimento: Estruturação de uma política pública robusta e com orçamento para a criação de abrigos e centros de referência especializados no acolhimento de vítimas de trabalho escravo, com equipes multidisciplinares preparadas para traumas de longa duração.
Para Não Desviar o Olhar: Um Arsenal de Conhecimento e Luta
Aprofundar-se no tema é o primeiro passo para a mobilização. Seguem materiais essenciais para compreender a complexidade da escravidão contemporânea no Brasil e fortalecer a luta por justiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- “O Que Escondem as Casas Grandes do Brasil no Século XXI?” (Vários Autores, Expert Editora): Livro que compila a pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, citada na matéria da CartaCapital. É o diagnóstico mais completo sobre o perfil do trabalho escravo doméstico no país, com dados e análises aprofundadas.
- “Trabalho Escravo Contemporâneo” (Ricardo Rezende Figueira, Editora Mauad X): Obra fundamental de um dos pioneiros no combate e estudo do tema no Brasil, oferecendo um panorama histórico e conceitual indispensável.
- “A Vida Fora do Cativeiro” (Patrícia de Oliveira, Editora Elefante): Relata histórias reais de trabalhadores resgatados, humanizando as estatísticas e mostrando os imensos desafios da vida pós-resgate.
REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS:
- Documentário “Doméstica” (2012, dirigido por Gabriel Mascaro): Embora não trate diretamente de escravidão, o filme é um retrato poderoso e íntimo do trabalho doméstico no Brasil, revelando as complexas relações de poder, afeto e exploração que se dão “portas adentro”.
- Reportagem Especial sobre Madalena Gordiano (Fantástico, TV Globo): As reportagens sobre este caso emblemático, facilmente encontradas online, são um estudo de caso completo, desde a denúncia e o resgate até a condenação em primeira instância dos empregadores, mostrando o que é possível quando há pressão social e uma atuação firme da justiça.
- Documentário “Precisamos Falar sobre o Assédio” (2016, dirigido por Paula Sacchetta): Explora as dinâmicas de poder e silenciamento que permitem a violência em espaços privados e públicos, um paralelo importante para entender por que as vítimas de escravidão doméstica demoram tanto para serem descobertas.
- Website e Documentários da “Repórter Brasil”: Esta organização é a principal fonte de jornalismo investigativo sobre trabalho escravo no Brasil. Seus documentários e reportagens são ferramentas cruciais de denúncia e conscientização.
Acompanhar o caso de Sônia Maria é testemunhar a disputa entre um Brasil que insiste em manter os alicerces da casa-grande e um Brasil que luta, com a lei e a solidariedade, para finalmente demoli-los. A liberdade dela é o termômetro da nossa.
Redação: Este artigo é um compilado de materiais que repercutiram na imprensa e não representam diretamente falas, posições ou práticas da entidade Educafro Brasil