A Reparação como Rosto da Justiça no Século 21: A Luta por um Tribunal da Escravidão na ONU

 

A Educafro Brasil, em sua missão de promover a inclusão e a justiça para a população negra, une-se ao crescente movimento global que pressiona a Organização das Nações Unidas (ONU) pela criação de um tribunal internacional sobre a escravidão e de um fundo de reparação. Esta não é apenas uma pauta; é a materialização da justiça histórica, o reconhecimento de um crime contra a humanidade e o único caminho para a superação do legado de miséria e desigualdade que a escravidão impôs aos povos africanos e seus descendentes.

A Proposta Global e Seus Defensores

Como reportado pelo colunista Jamil Chade, do UOL, o Fórum de Pessoas Afrodescendentes da ONU está na vanguarda desta iniciativa, recomendando a criação de dois mecanismos cruciais: um tribunal internacional especial para julgar as demandas sobre a escravidão e o colonialismo, e um fundo internacional de reparação.

Esta proposta ganha força com o apoio de dezenas de países africanos, caribenhos (liderados pela CARICOM) e latino-americanos, que veem nas recentes, mas ainda simbólicas, declarações de Portugal e da Holanda sobre suas responsabilidades na escravidão um sinal de que a pressão está a surtir efeito. A Holanda, por exemplo, anunciou a criação de um fundo de 200 milhões de euros para examinar medidas de reparação.

O movimento conta também com o apoio da própria cúpula da ONU. Volker Turk, o chefe de direitos humanos da organização, declarou publicamente o seu apoio, afirmando que “os governos devem se mobilizar para mostrar uma verdadeira liderança com compromissos genuínos para passar rapidamente das palavras à ação que resolverá adequadamente os erros do passado”. Esta posição, considerada “revolucionária” e “impensável” há uma década por diplomatas, eleva o debate a um novo patamar.

As Bases e Referências para a Mudança

A base para a criação do tribunal e do fundo de reparação é sólida e multifacetada:

  • Direito Internacional: A escravidão e o tráfico de escravos são considerados crimes contra a humanidade. A proposta busca aplicar este princípio para responsabilizar os Estados e instituições que se beneficiaram dessa prática.
  • Justiça Histórica: A reparação não se trata apenas de compensação financeira. Envolve a restituição, a reabilitação, a satisfação (como pedidos formais de desculpas e a construção de memoriais) e as garantias de não repetição do crime.
  • Precedentes: Existem precedentes de reparações por outras injustiças históricas, como as compensações pagas às vítimas do Holocausto e aos nipo-americanos que foram internados durante a Segunda Guerra Mundial.

Convenção Interamericana: A Ferramenta Jurídica Regional

No continente americano, a luta por reparação ganhou um poderoso instrumento jurídico: a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Este tratado, adotado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), é uma ferramenta fundamental que fortalece a legitimidade da nossa luta.

Até o momento, a Convenção foi ratificada por um grupo crescente de países, incluindo Brasil, Uruguai, México, Costa Rica, Equador e Antígua e Barbuda. A adesão destes Estados cria um bloco com obrigações legais claras para combater o racismo em todas as suas formas.

Para o Brasil, a ratificação tem um peso ainda maior: o Congresso Nacional a aprovou com o status de Emenda Constitucional, o que significa que suas cláusulas têm a força da própria Constituição Federal.

O Impacto da Convenção no Futuro da Reparação

A Convenção Interamericana impacta diretamente a luta por reparação de três formas cruciais:

  1. Obriga o Estado a Agir: O tratado estabelece o dever dos Estados de adotar “medidas especiais e ações afirmativas” para garantir os direitos das pessoas e grupos que são vítimas de discriminação racial. Isso cria uma base legal para exigir políticas públicas de reparação.
  2. Reconhece o Racismo Estrutural: A Convenção vai além do racismo interpessoal, reconhecendo a existência da discriminação indireta, institucional e estrutural – exatamente o legado deixado pela escravidão. Combater o racismo estrutural hoje é impossível sem confrontar suas origens históricas.
  3. Cria um Dever de Memória e Verdade: Ao obrigar os Estados a prevenir e punir o racismo, a Convenção implicitamente exige um acerto de contas com o passado. Não se pode eliminar o racismo sem educar sobre suas raízes, reconhecer as vítimas e responsabilizar os sistemas que o perpetuaram.

Assim, quando a Educafro e outros movimentos sociais demandam reparação, não estamos apenas fazendo um apelo moral. Estamos exigindo o cumprimento de uma obrigação legal que o Brasil assumiu perante a comunidade internacional e incorporou em sua própria Constituição. A Convenção é a prova de que a reparação não é uma opção, mas um dever.

Os Obstáculos e o Caminho a Seguir

Apesar dos avanços, a criação do tribunal global e do fundo enfrenta a resistência de governos europeus e de ex-metrópoles, que temem os custos financeiros e a responsabilização histórica. As dificuldades são reais e envolvem desde a complexidade logística para definir os beneficiários até a pressão política para que as nações mais ricas aceitem sua “condenação” a pagar pelo sistema que lhes permitiu enriquecer.

A pressão contínua, no entanto, tem se mostrado eficaz. Cada país que ratifica a Convenção Interamericana, cada declaração de um líder global, cada manifestação da sociedade civil organizada aumenta o custo político da inércia.

A Educafro Brasil acredita que a articulação entre a pressão diplomática na ONU e a força jurídica da Convenção Interamericana é o caminho para o futuro. Continuaremos a lutar em todas as frentes, para que a reparação pela escravidão deixe de ser uma demanda e se torne uma realidade, concretizando a justiça para milhões de afrodescendentes em nosso país e em todo o mundo.

 

Este artigo institucional foi construído com base na reportagem “ONU é pressionada a criar tribunal sobre escravidão e fundo de reparação”, de autoria do jornalista e colunista do UOL, Jamil Chade. O trabalho de Jamil Chade, correspondente em Genebra, pode ser acompanhado em sua coluna no portal UOL (https://www.google.com/search?q=noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/) e em suas redes sociais, como o canal “Café e Conversa com Jamil Chade” no YouTube.