“Identidade”, de Jorge Aragão: A Letra que Desmascarou o Elevador Social do Brasil

 

A história da música brasileira é, em sua essência, uma história de resistência negra. Desde os batuques e cantos que ecoavam nas senzalas como forma de comunicação e sobrevivência, passando pela criação do samba nos quintais e terreiros do Rio de Janeiro como um ato de afirmação cultural, a musicalidade afro-brasileira sempre foi mais do que arte: foi uma ferramenta para lutar, denunciar e existir.

Dentro dessa poderosa linhagem, poucas canções conseguiram traduzir com tanta precisão e genialidade a complexidade do racismo no Brasil como “Identidade”, de Jorge Aragão. Lançada no início dos anos 80, a música, conhecida como “Elevador”, é um marco do samba como crônica social. Para nós, da Educafro, que trabalhamos pela educação como ferramenta de libertação, analisar esta letra é um exercício fundamental de letramento racial.

 

A Composição: A Dor Real que Virou Hino

 

A força de “Identidade” começa em sua origem: a canção nasceu de uma experiência real de racismo vivida por Jorge Aragão nos anos 70. Ao entrar no elevador social de um hotel, foi abordado por uma senhora branca que, presumindo ser ele o ascensorista, disparou o “elogio” que se tornaria o cerne da música: “Você é um preto de alma branca”.

Essa frase é a síntese do racismo cordial: uma violência disfarçada de afeto, que elogia o indivíduo negro ao mesmo tempo em que rebaixa sua comunidade, tratando qualidades como educação como inerentemente brancas. Aragão, como herdeiro de uma tradição de cronistas do cotidiano, transformou essa dor em uma denúncia poética e universal.

Do Terreiro à MPB: O Samba Como Ferramenta de Denúncia

 

A canção de Aragão surge em um momento crucial. Enquanto a MPB dos anos 60 e 70, com gigantes como Gilberto Gil e Elza Soares, já incorporava a herança da música negra e trazia novas temáticas, o samba vivia sua própria revolução. Artistas como Jorge Aragão, parte da geração do Fundo de Quintal, sofisticaram a lírica do gênero, provando que o samba de raiz também era um espaço potente para a reflexão crítica, sem perder sua conexão com o povo.

“Identidade” se encaixa perfeitamente nessa trajetória histórica. Ela é a prova de que o samba, nascido como forma de resistência cultural nas comunidades negras do final do século XIX, continuava, quase cem anos depois, a cumprir seu papel de ser a voz de seu povo, denunciando as novas e velhas formas de opressão.

 

Diálogos e Conexões: “Identidade” na Encruzilhada da Arte Negra

 

A reflexão de Jorge Aragão não está isolada; ela dialoga com uma vasta produção cultural e intelectual negra.

  • Pensadores: A letra ecoa o pensamento de Lélia Gonzalez, que teorizou sobre o “racismo por denegação”, e Frantz Fanon em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, que dissecou a psicologia da assimilação. A metáfora do elevador é a representação perfeita do que Silvio Almeida define como Racismo Estrutural.
  • Cinema e Legado: A cordialidade que esconde o terror, tema da música, é a mesma explorada em “Corra!”. E a linhagem de denúncia e afirmação de “Identidade” não parou nos anos 80. A tocha foi passada para o rap, e hoje, quando ouvimos Emicida, Criolo ou Karol Conká, estamos ouvindo ecos da mesma coragem de Jorge Aragão: a de usar a música popular para dissecar as feridas do Brasil.

 

Para Aprofundar a Escuta: Um Guia de Referências

 

Compreender a profundidade de “Identidade” é uma jornada. Deixamos aqui um mapa com referências para quem deseja ir além.

Músicas:

  • “A Carne” – Elza Soares
  • “Olhos Coloridos” – Sandra de Sá
  • “Capítulo 4, Versículo 3” – Racionais MC’s
  • “Boa Esperança” – Emicida
  • “Isso Ninguém Me Tira” – Fundo de Quintal

Livros:

  • “Pele Negra, Máscaras Brancas” – Frantz Fanon
  • “Pequeno Manual Antirracista” – Djamila Ribeiro
  • “Racismo Estrutural” – Silvio Almeida
  • “Por um Feminismo Afro-Latino-Americano” – Lélia Gonzalez

Filmes:

  • “A Negação do Brasil” (2000) – Dir. Joel Zito Araújo
  • “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” (2020) – Dir. Fred Ouro Preto
  • “Doutor Gama” (2021) – Dir. Jeferson De

Podcasts:

  • “Mano a Mano” (Spotify)
  • “Angu de Grilo” (Flávia Oliveira e Isabela Reis)
  • “Afetos” (Gabi Oliveira e Karina Vieira)

Exposições e Projetos:

  • Museu Afro Brasil (São Paulo): Acervo essencial sobre a história e a arte negra.
  • Projeto Afro (projetoafro.com): Plataforma de mapeamento de artistas negros contemporâneos.

Conclusão

“Identidade” não é um evento isolado, mas um brilhante capítulo no longo livro da resistência musical negra no Brasil. Ela nos mostra que, da senzala ao streaming, a luta é a mesma: pelo direito de existir, de ocupar espaços e de celebrar quem somos. Que a letra de Jorge Aragão sirva como ferramenta de debate e orgulho, reafirmando sempre: não nos ajuda, só nos faz sofrer, nem resgata nossa identidade.

 

Redação: Reprodução parcial do site Afro cultura: https://afrocultura.com.br/a-presenca-negra-na-musica-brasileira-uma-historia-de-resistencia-e-influencia/