O Estado negociaria por oito horas, sem empurrar o pé na porta?

Por Frei David Santos (Originalmente publicado em O Globo, 24/10/2022)

Em outubro celebramos os 200 anos da morte de Frei Galvão, o primeiro brasileiro canonizado pelo Vaticano. Documentos do processo que tornou santo o frade franciscano revelam que ele teve uma posição progressista em relação à causa da igualdade racial em pleno século XVIII, quando a escravidão negra vigorava no Brasil. Essa informação consta do Processo de Canonização do Servo de Deus Frei Galvão (volume II, Roma, 1993), que culminou na missa campal celebrada pelo Papa Bento XVI em São Paulo, em 14 de março de 2007.

Os documentos tratam de um episódio envolvendo um soldado negro, de nome Caetano José da Costa, por volta do ano de 1780, quando era governador de São Paulo o capitão-mor Martins Lobo de Saldanha. Numa festa, o soldado tentou separar uma briga entre um cidadão e o filho do governador, ambos bêbados. O soldado segurou o filho do mandatário para interromper a troca de agressões. Para um negro, mesmo sendo policial, tocar um homem branco foi considerado um ato ofensivo. O governador mandou enforcar Caetano. Frei Galvão insurgiu-se.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de Justiça.” Mateus, capítulo 5.

Jesus, injustiçado numa cruz, com certeza vibrou no céu com a atitude de Frei Galvão, que foi defender aquele homem de uma injustiça. O governador então deu 24 horas para que o frade deixasse São Paulo, aplicando-lhe a pena de “degredo” para o Rio de Janeiro. Mas a população não aceitou. Diante de muitos protestos, o governador teve de revogar a expulsão do religioso e também a ordem de enforcamento do soldado negro.

Agora, em 2022, perguntamo-nos por que candidatos a presidente e a governador de estados demonstram tanto desinteresse na defesa da população afro-brasileira? Por que preferem remover as câmeras das roupas dos soldados, tirando a proteção dos bons policiais e da população das periferias e dando margem aos desonestos e racistas, que agem com violência? Por que, em vez de garantir trabalho para todos os menores, preferem diminuir a idade penal e superlotar espaços de correção que, em vez de educar, são cursos intensivos de criminalidade?

Hoje, se as barbáries cometidas pelo ex-deputado Roberto Jefferson, branco e rico, fossem praticadas por um negro ou pobre, o Estado iria negociar por oito horas, sem empurrar o pé na porta? Gastaria dinheiro público para a mobilização de outras autoridades, até do ministro da Justiça?

Quando um pobre enfrenta um policial, este é autorizado a revidar, atirar até matar e colocar no boletim que foi auto de resistência. Voltando ao caso de Roberto Jefferson, olhem lá no boletim que os policiais fizeram. Colocaram auto de resistência? Ou essa norma só vale para os pobres?

Lutamos pela recuperação dos maiores e dos menores infratores e seu regresso, recuperados, à sociedade, para ajudar o Brasil a crescer. É o caso do professor Roberto da Silva, ex-menor infrator e ex-maior presidiário. Ele se recuperou e hoje tem pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde já formou dezenas de outros doutores. É possível.

Brutalidade policial e redução da maioridade penal não é a solução. É uma solução equivocada que alguns políticos racistas mantêm em seu programa de governo. Devemos defender a prisão e o julgamento justo de quem comete crimes, seja Roberto Jefferson, branco, negro, rico ou pobre. A polícia não deve atirar para matar durante abordagens. Queremos prisão com justiça e não morte e injustiça. A polícia deve tratar todos com igualdade.


Frei David Santos é teólogo e especialista em ações afirmativas.


Análise do Educafro News: O Espetáculo, o Apito e o Pacto

 

O que o caso Roberto Jefferson significou? Para o mundo, foi a imagem de um Brasil flertando com o ridículo, onde um aliado político, sentindo-se blindado pelo poder, acredita estar acima da lei. A cena foi performática: um homem branco, armado com um arsenal de guerra, desafiando a Polícia Federal como se encenasse um filme de ação.

Foi um “apito de cachorro” (dog whistle) que falhou espetacularmente. O “apito de cachorro” é um sinal que só a sua base entende; neste caso, um gesto de desafio “patriótico” contra o “sistema” (representado pelo STF). Mas a performance foi tão espalhafatosa e violenta – atirando para matar em policiais – que o apito se tornou um estrondo. Ele se tornou indefensável até para parte de sua própria bolha, revelando o delírio de quem se crê intocável.

O Impacto na Sociedade e o Pacto da Branquitude

O impacto mais profundo é o que Frei David aponta com maestria: o escárnio da desigualdade. O caso expôs, em rede nacional, o que a Doutora Cida Bento chama de “Pacto Narcísico da Branquitude”. Não é sobre Roberto Jefferson; é sobre um sistema que instintivamente protege corpos brancos, mesmo quando estão atirando, enquanto sentencia corpos negros ao “auto de resistência” por muito menos.

O Estado, que negociou por horas com um homem que lançou granadas, é o mesmo Estado que invade favelas atirando de helicóptero. Essa é a “necropolítica” descrita pelo filósofo Achille Mbembe, onde o Estado decide quem pode viver e quem deve morrer. O caso Jefferson demonstrou que, no Brasil, o privilégio branco é o colete à prova de balas mais eficaz que existe.

A Importância de Frei David

É aqui que a voz de Frei David se torna tão crucial. Com uma trajetória de décadas, desde a fundação da Educafro até a luta incansável que resultou nas cotas raciais, Frei David entende o poder dos símbolos. Ao conectar o caso Jefferson ao de Frei Galvão, ele eleva o debate do pântano político para a esfera da moralidade e da justiça divina.

Ele nos lembra que a luta contra o racismo não é uma pauta “identitária” de um grupo, mas uma exigência moral para a nação. A autoridade de Frei David, reconhecida no Brasil e no mundo, não vem de armas ou de cargos políticos, mas da coerência de uma vida dedicada a transformar a fé em ação concreta pela dignidade humana. Seu artigo não é apenas uma opinião; é um chamado profético à consciência de um país que precisa, urgentemente, decidir se a sua lei vale para todos ou apenas para alguns.


 

Para Aprofundar a Reflexão

 

Referências Bibliográficas:

  • BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. Editora Companhia das Letras, 2022.
    • Por que ler: Obra fundamental da psicóloga Cida Bento que conceitua o “pacto narcísico da branquitude”, um acordo tácito entre pessoas brancas para manter privilégios e explicar a diferença de tratamento.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica. Editora N-1, 2018.
    • Por que ler: Conceito central do filósofo camaronês para entender como o Estado moderno utiliza seu poder para ditar quem pode viver e quem deve morrer, aplicando-se diretamente à lógica das operações policiais em favelas.
  • ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Editora Jandaíra, 2019.
    • Por que ler: Explica como o racismo não é apenas um ato individual de preconceito, mas um sistema que opera dentro das instituições do Estado, como a polícia e o Judiciário, normalizando a desigualdade de tratamento.

Referências Audiovisuais:

  • Entrevista com Cida Bento no programa “Roda Viva” (2022).
    • Por que assistir: A autora explica de forma didática e acessível o conceito do “Pacto da Branquitude” e como ele se manifesta em situações cotidianas e em grandes eventos, como o caso Roberto Jefferson. Disponível no YouTube.
  • Documentário “Notícias de uma Guerra Particular” (1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund.
    • Por que assistir: Um clássico que expõe a lógica da “guerra” aplicada às favelas, em contraponto ao tratamento do caso Jefferson.
  • Cobertura Jornalística da Prisão de Roberto Jefferson (Outubro de 2022).
    • Por que assistir: Revisitar os arquivos da imprensa (Jornal Nacional, GloboNews, CNN Brasil) para analisar a “performance” do ex-deputado e a longa negociação conduzida pelas autoridades.